A penitência transforme tudo que em nós há de mal.
É bem maior que o pecado o vosso dom sem igual!
(Hino próprio do tempo da quaresma.)
São numerosos
os cristãos que já não acreditam em Satã. A experiência que eles têm da
tentação não lhes parece postular de maneira alguma a existência de potestades
demoníacas; o pecado encontra explicação satisfatória na liberdade humana. A
personificação do mal pertence a uma época já ultrapassada em que o homem se
considerava joguete de forças cósmicas. A mitologia popular de ontem é hoje
rejeitada, e aquilo que se chamava de possessão diabólica é um traumatismo
entre outros que a psicologia do profundo procura explicar. Por acaso a própria
Igreja não acompanhou a mesma evolução tornando-se extremamente prudente na
prática de exorcismos?
Outros
cristãos não compartilham esta opinião. Segundo eles, Satã foi mais ativo!
Passar despercebido não é seu maior ardil? Trabalha tanto mais a vontade quanto
menos combatido! Aliás, afirmam estes cristãos, suposto que Satã não atue mais
no mundo, como se explicam as numerosas perícopes do evangelho nas quais se
trata dele? O próprio Jesus teria sido vitima de crenças populares e vãs? Não,
evidentemente.
Estas múltiplas
perguntas nos convidam a aprofundar o conteúdo de nossa fé. Que alcance se deve
atribuir à afirmação tradicional sobre o papel de Satã no mundo? Percorrendo as
etapas da história da salvação, descobriremos que esta afirmação não é
absolutamente gratuita. Sem ela, a obra de Cristo e o papel do Cristão não
poderiam ser revelados em todas as dimensões.
O homem pagão
se sente dependente de um mundo de espíritos superiores. Rapidamente passa a
explicar o bem e o mal com relação a dois princípios em luta entre si. O
dualismo do espírito do bem e do espírito do mal se encontra frequentemente na
história religiosa da humanidade. A própria criação do mundo, muitas vezes se
apresenta como a vitória do bem sobre o mal.
No quadro da
Aliança do monoteísmo de Israel , esta visão dualista se transforma
profundamente. Há somente um Deus, Javé, e a existência de qualquer outro ser
depende totalmente de sua benevolência criadora. É, pois, inimaginável que uma
criatura, seja ela qual for, dispute com Deus seu domínio exclusivo ou coloque
radicalmente em causa o seu desígnio de amor e de misericórdia.
O homem foi
criado para responder pela fidelidade à iniciativa amorosa de Deus; mas, porque
é livre, pode ser infiel e trair a sua vocação. Na realidade, o homem recusou a
Deus e esta recusa lhe é imputável.
Mas a experiência vivida do pecado leva o homem a dizer que cedeu à
tentação como se o mal estivesse objetivamente presente na realidade antes dele
consentir por um ato de sua liberdade. O que encobre esta experiência? Significa
que o homem, pecando, tem consciência de se tornar parte ativa de uma
solidariedade no pecado que a ele preexiste e envolve outras criaturas
espirituais além do homem. Se Deus criou tudo por amor, a possibilidade de
recusa se estende à totalidade da criação.
Para o homem
bíblico as coisas se explicam desta maneira. O pecado do homem traz a
consciência da expulsão do paraíso terrestre. Ei-lo daí em diante num mundo que
conhece a morte. Este mundo constitui o domínio das potestades espirituais que
também recusaram a Deus. A morte é uma arma terrível que empregam para fazer
cair o homem na tentação. Cedendo, torna-se o homem escravo delas. Mas venha um
homem que não cede, porque acolhe em si a ação vitoriosa do Espírito e da
Palavra de Deus, e o poder da morte estará destruído! Porque as potestades
demoníacas não podem reter o homem na escravidão a não ser por seu
consentimento livre. O homem nunca é joguete de outras criaturas espirituais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário