quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Discernindo o tentador.



 A penitência transforme tudo que em nós há de mal. 
É bem maior que o pecado o vosso dom sem igual! 
(Hino próprio do tempo da quaresma.)



São numerosos os cristãos que já não acreditam em Satã. A experiência que eles têm da tentação não lhes parece postular de maneira alguma a existência de potestades demoníacas; o pecado encontra explicação satisfatória na liberdade humana. A personificação do mal pertence a uma época já ultrapassada em que o homem se considerava joguete de forças cósmicas. A mitologia popular de ontem é hoje rejeitada, e aquilo que se chamava de possessão diabólica é um traumatismo entre outros que a psicologia do profundo procura explicar. Por acaso a própria Igreja não acompanhou a mesma evolução tornando-se extremamente prudente na prática de exorcismos? 


Outros cristãos não compartilham esta opinião. Segundo eles, Satã foi mais ativo! Passar despercebido não é seu maior ardil? Trabalha tanto mais a vontade quanto menos combatido! Aliás, afirmam estes cristãos, suposto que Satã não atue mais no mundo, como se explicam as numerosas perícopes do evangelho nas quais se trata dele? O próprio Jesus teria sido vitima de crenças populares e vãs? Não, evidentemente.

Estas múltiplas perguntas nos convidam a aprofundar o conteúdo de nossa fé. Que alcance se deve atribuir à afirmação tradicional sobre o papel de Satã no mundo? Percorrendo as etapas da história da salvação, descobriremos que esta afirmação não é absolutamente gratuita. Sem ela, a obra de Cristo e o papel do Cristão não poderiam ser revelados em todas as dimensões.


O homem pagão se sente dependente de um mundo de espíritos superiores. Rapidamente passa a explicar o bem e o mal com relação a dois princípios em luta entre si. O dualismo do espírito do bem e do espírito do mal se encontra frequentemente na história religiosa da humanidade. A própria criação do mundo, muitas vezes se apresenta como a vitória do bem sobre o mal. 

No quadro da Aliança do monoteísmo de Israel , esta visão dualista se transforma profundamente. Há somente um Deus, Javé, e a existência de qualquer outro ser depende totalmente de sua benevolência criadora. É, pois, inimaginável que uma criatura, seja ela qual for, dispute com Deus seu domínio exclusivo ou coloque radicalmente em causa o seu desígnio de amor e de misericórdia. 


O homem foi criado para responder pela fidelidade à iniciativa amorosa de Deus; mas, porque é livre, pode ser infiel e trair a sua vocação. Na realidade, o homem recusou a Deus e esta recusa lhe é imputável.  Mas a experiência vivida do pecado leva o homem a dizer que cedeu à tentação como se o mal estivesse objetivamente presente na realidade antes dele consentir por um ato de sua liberdade. O que encobre esta experiência? Significa que o homem, pecando, tem consciência de se tornar parte ativa de uma solidariedade no pecado que a ele preexiste e envolve outras criaturas espirituais além do homem. Se Deus criou tudo por amor, a possibilidade de recusa se estende à totalidade da criação.


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Para o homem bíblico as coisas se explicam desta maneira. O pecado do homem traz a consciência da expulsão do paraíso terrestre. Ei-lo daí em diante num mundo que conhece a morte. Este mundo constitui o domínio das potestades espirituais que também recusaram a Deus. A morte é uma arma terrível que empregam para fazer cair o homem na tentação. Cedendo, torna-se o homem escravo delas. Mas venha um homem que não cede, porque acolhe em si a ação vitoriosa do Espírito e da Palavra de Deus, e o poder da morte estará destruído! Porque as potestades demoníacas não podem reter o homem na escravidão a não ser por seu consentimento livre. O homem nunca é joguete de outras criaturas espirituais.



             Santo Inácio de Loyola, antecipando os conceitos da moderna psicologia, vai falar do Inimigo da Natureza humana, que pode ser entendido como: O inimigo da natureza humana, como a nossa liberdade que está carregada de egoísmos e desordens; O mundo, como cidade do mal, com seu hedonismo e tentações próprias; ou mesmo Satã como personificação do mal a nos tentar. Mas certamente Inácio trabalha na estrada da liberdade que pode ser discernida e ordenada.

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