quarta-feira, 27 de abril de 2016

Porque Deus lhe quer falar....


O silêncio de Deus.
  
As pessoas que mais falam são, geralmente, as que menos têm a dizer. 
(São João Maria Vianney)


Os monges, os eremitas e os místicos de todos os tempos e de todas as religiões sempre procuraram a Deus no silêncio, na solidão dos desertos, das florestas, das montanhas. O próprio Senhor Jesus viveu quarenta dias em absoluta solidão, passando longas horas num coração a coração com o Pai, no silêncio da noite. 


Nós somos chamados de forma incomensurável a retirar-nos a espaços para um silêncio mais profundo, para um isolamento com  Deus estar a sós com Ele, não com nossos livros, nossos aparelhos eletrônicos, os nossos pensamentos, as nossas recordações, mas num despojamento perfeito; a permanecer na sua presença – silenciosos, vazios, imóveis, expectantes.



Veja-se na natureza, a árvores, as flores e a erva dos campos crescem em silêncio, as estrelas, a lua, o sol movem-se em silêncio. O essencial não é o que possamos dizer, mas o que Deus nos diz e o que Ele diz aos outros através de nós. 

Ele escuta-nos no silêncio; no silêncio fala às nossas almas. No silêncio é-nos dado o privilégio de escutar Sua voz. Silêncio dos nossos olhos, silêncio dos nossos ouvidos, silêncio das nossas bocas, silêncio dos nossos espíritos. No silêncio do coração, Deus falará de maneira abissal.
O silêncio de Deus é um grande mistério que em parte é revelado aos contemplativos.


O grande místico e Doutor da Igreja São João da Cruz dizia: Para se progredir, o que mais se necessita é saber calar diante de Deus. A linguagem que ele melhor ouve é a do silêncio de amor. O silêncio é a ciência que faz o ser humano crescer na perfeição do conhecimento espiritual.

Pe. José Inácio do Vale

segunda-feira, 25 de abril de 2016

A mística da Juventude: Amar e ser amado.

A alegria de amar e ser amado.

     
     Penso em primeiro lugar na juventude. 

      Qual é a herança que passamos aos nossos jovens? 

      Há, sem dúvida, conquistas excelentes na tecnologia, na área da comunicação, nas descobertas do mistério da vida e a enumeração se estende em vários campos.
 
      Temos, no entanto, que reconhecer o detrimento causado na vivência dos princípios morais com uma série de desmandos que afetam a vida pessoal e familiar e a perda de referencial sobre o próprio sentido da vida humana.
 
       A consequência é conhecida. Quem de nós não percebe o crescimento da dependência alcoólica, do uso de drogas e da banalização do sexo? Criou-se, aos poucos, uma cultura permissiva que idolatra o prazer e se contenta de emoções fugazes.

        Há fatores que contribuem para essa situação, como a ambição do dinheiro, a falta de critérios em programas televisivos, o incentivo aos grandes espetáculos de massa que despersonalizam os jovens, induzindo comportamentos miméticos. 

        Nem podemos esquecer a desarticulação da sociedade que não consegue oferecer trabalho e condições de sobrevivência digna às novas gerações.

        Crescem a frustração e o vazio que se refletem em enormes grupos de jovens que se aglomeram nas praças, noites a dentro, curtindo em conjunto o passar das horas, envolvidos por gritos e sons estridentes que impedem até a conversa entre as pessoas e provocam um ambiente de nervosismo e desgaste psíquico e desequilíbrio.

       Tudo isso são fatos conhecidos e que necessitam a vontade de oferecer novos valores que respondam às expectativas mais profundas do ser humano. É certo que a organização da sociedade poderá facilitar quadros trabalho, opções de ocupação sadia das energias e do tempo.

        É preciso, porém, “alargar o horizonte” e repensar o nosso modo de viver. O mundo ficou marcado pelas injustiças, violência, ódio, segregação e perda da vontade de sobreviver. 

        A solução se encontra na redescoberta da transcendência do ser humano, da sua abertura a Deus e à felicidade que ultrapassa os engodos e miragens do quotidiano. Somos destinados à vida feliz que se identifica com a alegria da verdade, da adesão ao Bem e à superação do medo diante da morte. 
        

             É aqui que brilha a beleza da revelação cristã, afirmando o projeto divino da vitória sobre o pecado e a morte e a esperança da realização na plena comunhão entre nós e com Deus.


         Ao mesmo tempo em que se alarga o horizonte na confiança em Deus e na promessa da felicidade, surge, também, a valorização desta vida terrena que adquire todo seu sentido como a experiência fraterna da liberdade que supera o egoísmo e se abre para o dom de si.

         Nada realiza mais a pessoa humana do que a vivência da gratuidade do amor, aliada à certeza da eternidade feliz. Sem a esperança, não entendemos a existência terrena. 

         Mas, iluminados por este esperança encontramos a alegria de respeitar e amar a pessoa humana, de estreitar laços de amizade, de vencer discórdias e barreiras, de construir relações de solidariedade fraterna.

         Somente o horizonte de transcendência liberta dos apegos e amarras das bagatelas e dos fogos fátuos. 

         Como devolver aos milhões de jovens, a alegria de amar e ser amado?

         Esta é a melhor herança que podemos oferecer às novas gerações. 

         Nossos jovens merecem ser felizes.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Sentir e saborear a Misercórdia.

Entranhas de Misericórdia

JO 8, 1-11


Jesus foi para o monte das Oliveiras. Ao amanhecer, ele voltou ao Templo, e todo o povo ia ao seu encontro. Então Jesus sentou-se e começou a ensinar. Chegaram os doutores da Lei e os fariseus trazendo uma mulher, que tinha sido pega cometendo adultério. Eles colocaram a mulher no meio e disseram a Jesus: "Mestre, essa mulher foi pega em flagrante cometendo adultério. A Lei de Moisés manda que mulheres desse tipo devem ser apedrejadas. E tu, o que dizes?" Eles diziam isso para pôr Jesus à prova e ter um motivo para acusá-lo. Então Jesus inclinou-se e começou a escrever no chão com o dedo. Os doutores da Lei e os fariseus continuaram insistindo na pergunta. Então Jesus se levantou e disse: "Quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra." E, inclinando-se de novo, continuou a escrever no chão. Ouvindo isso, eles foram saindo um a um, começando pelos mais velhos. E Jesus ficou sozinho. Ora, a mulher continuava ali no meio. Jesus então se levantou e perguntou: "Mulher, onde estão os outros? Ninguém condenou você?" Ela respondeu: "Ninguém, Senhor." Então Jesus disse: "Eu também não a condeno. Pode ir, e não peque mais".

Esta trecho do evangelho de João não parece em nada com o estilo do Evangelista João. Tem todo o estilo de Lucas, pois é conhecida a preocupação de Lucas em ressaltar todas as demonstrações de atenção de Nosso Senhor em relação à mulher e sua intenção de ultrapassar o quadro jurídico da lei no perdão e na misericórdia. Encaixaria muito bem em Lucas 21, 37-38 que faz várias alusões a Daniel. Aliás o capítulo 21 de Lucas poderia ser considerado, perfeitamente, como um Midrash de Daniel. 

O termo hebraico Midrash (em hebraico: מדרש; plural midrashim, "história" de "investigar" ou "estudo") é um método homilético (Pregação ou Formação textual) da exegese (Interpretação critica) bíblica. O termo também se refere à compilação integral dos ensinamentos homiléticos sobre a Bíblia. O Midrash é uma maneira de interpretar histórias bíblicas que vai além de simples destilação de ensinamento religioso, legal ou moral. Ele preenche muitas lacunas deixadas na narrativa bíblica sobre eventos e personalidades que são apenas insinuados.” (Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.)


Parece evidente, no entanto, que o evangelista tem diante dos olhos a mesma acusação de adultério que encontramos em Daniel capítulo 13; a mesma reviravolta da situação a mesma alusão aos velhos; a mesma preocupação dos acusadores em colocar sua vitima bem a vista; o mesmo apelo à lei de Moisés em lapidá-la.

Cristo se apresenta como o novo Daniel, justificando não apenas uma inocente, como fez o Jovem Daniel no Antigo Testamento, mas até mesmo perdoando uma culpada e demonstrando assim que o julgamento é graça, perdão e misericórdia.

Lá, Suzana era inocente e teve a vida poupada pela intervenção de Daniel, que representa o testemunho do povo justo, isto é, perfeitamente observante da Lei. Aqui a Adultera era culpada e foi poupada pela ação do Cristo que, como novo Daniel, é o embaixador da misericórdia do Pai, proclamando a nova lei do amor, da caridade, da graça. Fica ressaltada a humanidade de Cristo em oposição aos velhos escribas e fariseus.

Aqui a mulher adultera é a imagem da Igreja: pecadora, mas perdoada, culpada, mas convidada a não pecar. Experimenta a imensa misericórdia de Deus e nunca mais deixará de seguir o Cristo. Será a discípula fiel, porque perdoada e amada de maneira incondicional. 


A experiência do perdão – que a igreja faz, assim como a adultera fez – a experiência do amor de Deus no perdão recebido, a torna discípula fiel. Experimentar a ação misericordiosa de Deus na nossa vida é um caminho seguro do discipulado de Cristo, já agora.

Dessa maneira, no meio do templo, Jesus se apresenta como o Filho de Deus com entranhas de compaixão e misericórdia, do qual jorra a vida em abundância para essa mulher e nela para toda a humanidade necessitada.

Conhecer, experimentar a Deus !


Conhecimento pela fé em Cristo

Fil 3, 8-14


E mais ainda: considero tudo uma perda, diante do bem superior que é o conhecimento do meu Senhor Jesus Cristo. Por causa dele perdi tudo, e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo, e estar com ele. E isso, não mais mediante uma justiça minha, vinda da Lei, mas com a justiça que vem através da fé em Cristo, aquela justiça que vem de Deus e se apoia sobre a fé. Quero, assim, conhecer a Cristo, o poder da sua ressurreição e a comunhão em seus sofrimentos, para tornar-me semelhante a ele em sua morte, a fim de alcançar, se possível, a ressurreição dos mortos. Não que eu já tenha conquistado o prêmio ou que já tenha chegado à perfeição; apenas continuo correndo para conquistá-lo, porque eu também fui conquistado por Jesus Cristo. Irmãos, não acho que eu já tenha alcançado o prêmio, mas uma coisa eu faço: esqueço-me do que fica para trás e avanço para o que está na frente.  Lanço-me em direção à meta, em vista do prêmio do alto, que Deus nos chama a receber em Jesus Cristo.”

Este trecho da Carta de São Paulo aos Filipenses faz parte de um conjunto de bilhetes de Paulo aos seus queridos amigos daquela comunidade. Estes bilhetes foram dirigidos ao confronto com os perfeccionistas gnósticos. Sabemos que eles, pela GNOSE – do Grego conhecimento cada vez mais apurado – ascendiam à vida eterna com mais facilidade. Sem o conhecimento não tinham a herança eterna.


Paulo Faz apologia de seu ministério e de sua vocação. Além de alguns temas antigos, já tratados por Paulo, ele propõe várias teses novas particularmente importantes. Uma delas é a comunhão nos sofrimentos de Cristo que só é compreendida à luz das descobertas doutrinais que Paulo nunca deixou de fazer no decorrer de sua vida. 


Paulo sente a necessidade de justificar essa associação entre a morte de Cristo e a mortificação cristã. Mostra entre outras coisas, que o batismo faz do cristão um único corpo levado, numa só e única passagem, da morte à vida. Unido a Cristo, o cristão pertence-lhe por seu próprio corpo. Eis a razão pela qual seus sofrimentos tornam-se misticamente os de Cristo, especialmente quando originados da missão e do testemunho. 

No versículo 8 Paulo afirma que todas as vantagens adquiridas no judaísmo nada mais significam para ele. Ele nega, daqui por diante, qualquer valor aos sistemas oferecidos pela Gnose a seus adeptos, Paulo se aproxima de um velho tema sapiencial, com efeito, os Sábios já opunham sua inteligência das coisas de Deus ao pseudoconhecimento do mundo. 

Aliás, este conhecimento louvado por Paulo, é uma relação pessoal, uma “comunhão” com o poder vital de Cristo passando da morte para a ressurreição e que nos torna capazes, por sua vez, de passar da morte do pecado para a vida de Deus. O antigo testamento já havia apresentado o conhecimento de Deus muito mais como uma vivência do que como uma teoria.

Paulo partilha conosco que este conhecimento é atualmente participação na vida do Ressuscitado e renovação de nossa própria vida.

Diante de alguns cristãos orgulhosos e perfeccionistas, ele se apresenta como um homem em marcha e em busca, insatisfeito e mendigando a justiça divina. Ele ainda não chegou ao termo, no sentido de que ainda não acabou sua iniciação doutrinal ao Mistério de Jesus. Certamente ele se apresenta, não na direção de um ideal de perfeição intelectual ou moral, mas na direção do “prêmio da corrida”, isto é da ressurreição dos mortos.

O conhecimento que os gnósticos prezavam tanto para a chegada numa eternidade feliz - doutrina que tanto confundiu os primeiros cristãos, que pensavam que também necessitariam de muito conhecimento para chegar ao prêmio da ressurreição - é para Paulo uma experiência da fé em Cristo, experiência da ação da misericórdia do Senhor nas nossas vidas. Este conhecimento é supremo e supera todos os outros conhecimentos. Isto é: experimentar-se amado pelo Cristo e experimentar a graça de Deus atuando em nossa realidade de vida.

A experiência da misericórdia de Deus é o melhor conhecimento que se pode adquirir.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Discernindo Sentimentos





O sentimento sadio é vida para o corpo,
mas a inveja é podridão para os ossos.
Prov 14, 30







Durante o percurso de uma destas viagens para algumas destas longas reuniões que inventamos, surgiu o assunto  espiritual dos nossos desejos e sentimentos. E, assim, constatamos que é difícil dar nomes a eles e que seria interessante criar um dicionário de sentimentos, ou seja: o que significa tristeza, saudade, desânimo, depressão, exultação, euforia, alegria, etc.

 
O certo é que estamos acostumados à exegese secularizante da nossa consciência e então, interpretamos tudo sob os parâmetros de “euforia” e “desânimo”, “relaxado” ou “tenso” etc., e deste diagnóstico se vai imediatamente à terapia da “distração” ou do “comprimido sedativo, desconectante, sonífero”.



Aqueles que se negam a fazer uma leitura religiosa de seu coração, é certo que nunca compreenderão o discernimento espiritual.

Além de tudo há um discernimento médico, fisiológico, que pode diagnosticar com toda verdade “cólicas de fígado”; há outro discernimento sociológico, que sem negar o anterior, pode simultaneamente diagnosticar que o mesmo sujeito está ainda desanimado por este ou aquele motivo; e há um Discernimento Espiritual que no mesmo sujeito, e sem negar os anteriores diagnósticos, é claro, mas que brota das suas próprias certezas, diagnostica que este próprio sujeito, hepático e desanimado, está além disso, em desolação, do mau espírito.


Para complicar, há alguns autores que, de um outro ponto de vista, temem a consolação, e ainda mais, chegam a considerar conveniente que o sujeito se mantenha em desolação... Nada mais alheio e contrário ao pensamento de Santo Inácio a este respeito. A desolação, para Inácio, é tempo do mau espírito; e sempre devemos nos empenhar, com todas nossas forças, em lutar contra ela, pois é próprio do cristão viver consolado pelo Senhor.






Aqueles que pensam que “desolação total, seja algo natural, coisas que vão e que vêm”, não entenderam a grave deterioração que a desolação causa à aquele que não a combate. No fundo, talvez, não tenha entendido a malícia da ação do inimigo da natureza humana.










“O ladrão não vem senão a roubar, a matar, e a destruir;  eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância”. (Jo. 10,10)



quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Discernindo o tentador.



 A penitência transforme tudo que em nós há de mal. 
É bem maior que o pecado o vosso dom sem igual! 
(Hino próprio do tempo da quaresma.)



São numerosos os cristãos que já não acreditam em Satã. A experiência que eles têm da tentação não lhes parece postular de maneira alguma a existência de potestades demoníacas; o pecado encontra explicação satisfatória na liberdade humana. A personificação do mal pertence a uma época já ultrapassada em que o homem se considerava joguete de forças cósmicas. A mitologia popular de ontem é hoje rejeitada, e aquilo que se chamava de possessão diabólica é um traumatismo entre outros que a psicologia do profundo procura explicar. Por acaso a própria Igreja não acompanhou a mesma evolução tornando-se extremamente prudente na prática de exorcismos? 


Outros cristãos não compartilham esta opinião. Segundo eles, Satã foi mais ativo! Passar despercebido não é seu maior ardil? Trabalha tanto mais a vontade quanto menos combatido! Aliás, afirmam estes cristãos, suposto que Satã não atue mais no mundo, como se explicam as numerosas perícopes do evangelho nas quais se trata dele? O próprio Jesus teria sido vitima de crenças populares e vãs? Não, evidentemente.

Estas múltiplas perguntas nos convidam a aprofundar o conteúdo de nossa fé. Que alcance se deve atribuir à afirmação tradicional sobre o papel de Satã no mundo? Percorrendo as etapas da história da salvação, descobriremos que esta afirmação não é absolutamente gratuita. Sem ela, a obra de Cristo e o papel do Cristão não poderiam ser revelados em todas as dimensões.


O homem pagão se sente dependente de um mundo de espíritos superiores. Rapidamente passa a explicar o bem e o mal com relação a dois princípios em luta entre si. O dualismo do espírito do bem e do espírito do mal se encontra frequentemente na história religiosa da humanidade. A própria criação do mundo, muitas vezes se apresenta como a vitória do bem sobre o mal. 

No quadro da Aliança do monoteísmo de Israel , esta visão dualista se transforma profundamente. Há somente um Deus, Javé, e a existência de qualquer outro ser depende totalmente de sua benevolência criadora. É, pois, inimaginável que uma criatura, seja ela qual for, dispute com Deus seu domínio exclusivo ou coloque radicalmente em causa o seu desígnio de amor e de misericórdia. 


O homem foi criado para responder pela fidelidade à iniciativa amorosa de Deus; mas, porque é livre, pode ser infiel e trair a sua vocação. Na realidade, o homem recusou a Deus e esta recusa lhe é imputável.  Mas a experiência vivida do pecado leva o homem a dizer que cedeu à tentação como se o mal estivesse objetivamente presente na realidade antes dele consentir por um ato de sua liberdade. O que encobre esta experiência? Significa que o homem, pecando, tem consciência de se tornar parte ativa de uma solidariedade no pecado que a ele preexiste e envolve outras criaturas espirituais além do homem. Se Deus criou tudo por amor, a possibilidade de recusa se estende à totalidade da criação.


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Para o homem bíblico as coisas se explicam desta maneira. O pecado do homem traz a consciência da expulsão do paraíso terrestre. Ei-lo daí em diante num mundo que conhece a morte. Este mundo constitui o domínio das potestades espirituais que também recusaram a Deus. A morte é uma arma terrível que empregam para fazer cair o homem na tentação. Cedendo, torna-se o homem escravo delas. Mas venha um homem que não cede, porque acolhe em si a ação vitoriosa do Espírito e da Palavra de Deus, e o poder da morte estará destruído! Porque as potestades demoníacas não podem reter o homem na escravidão a não ser por seu consentimento livre. O homem nunca é joguete de outras criaturas espirituais.



             Santo Inácio de Loyola, antecipando os conceitos da moderna psicologia, vai falar do Inimigo da Natureza humana, que pode ser entendido como: O inimigo da natureza humana, como a nossa liberdade que está carregada de egoísmos e desordens; O mundo, como cidade do mal, com seu hedonismo e tentações próprias; ou mesmo Satã como personificação do mal a nos tentar. Mas certamente Inácio trabalha na estrada da liberdade que pode ser discernida e ordenada.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

As tentações e o Discernimento dos Espíritos





 Então Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, 
para ser tentado pelo diabo.
(MT 4, 1)
 
 O relato da tentação de Cristo é apresentado de maneira a nos mostrar que Cristo reviveu pessoalmente as “tentações” (Dt 8,2) do povo judeu no deserto. Ao guardar intacta sua obediência para com Deus, Cristo vai, assim, colocar novamente em marcha o desígnio da salvação, entravado pela desobediência do povo no deserto.

Cristo revive as tentações do povo de Deus como um segundo Moisés no deserto: a menção dos “quarenta dias e quarenta noites” lembra o jejum idêntico do patriarca.


 As tentações do Cristo no Deserto conservam sempre a sua atualidade. Hoje elas nos levam a tomar consciência da perspectiva fundamental que nos anima. 

O Caminho da salvação obtida em Cristo exige de cada um adaptação constante. O cristão, inserido neste mundo ainda “dilacerado pelo pecado e pela morte”,  é ameaçado de contestar a retidão da fé.

Os cristãos conscientes são tentados, em suas responsabilidades, às diferentes formas de materialismo contemporâneo. O trabalho do tentador as vezes é discreto, mas nenhum campo lhe escapa.

No momento em que a Igreja reforma a si mesma – não sem dificuldades, aliás – para responder vigorosa e mais lucidamente aos desafios do paganismo moderno, é urgente que os cristãos revejam mais uma vez sua compreensão do destino de Deus e conheçam melhor os perigos de degradação para os quais pode levá-los a ação do Tentador.





 A lição deste relato permanece sempre a mesma ao longo dos tempos: o ser humano deve aprender a viver de um pão novo, que é a vontade de Deus.


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domingo, 7 de fevereiro de 2016

Irradiar a Santidade de Deus.


Is 6,1-2a.3-8

No ano em que morreu Ozias, rei de Judá,
vi o Senhor, sentado num trono alto e sublime;
a fímbria do seu manto enchia o templo.
À sua volta estavam serafins de pé,
que tinham seis asas cada um
e clamavam alternadamente, dizendo:
«Santo, santo, santo é o Senhor do Universo.
A sua glória enche toda a terra!»
Com estes brados as portas oscilavam nos seus gonzos
e o templo enchia-se de fumo.
Então exclamei: «Ai de mim, que estou perdido,
porque sou um homem de lábios impuros,
moro no meio de um povo de lábios impuros
e os meus olhos viram o Rei, Senhor do Universo».
Um dos serafins voou ao meu encontro,
tendo na mão um carvão ardente
que tirara do altar com uma tenaz.
Tocou-me com ele na boca e disse-me:
«Isto tocou os teus lábios:
desapareceu o teu pecado, foi perdoada a tua culpa».
Ouvi então a voz do Senhor, que dizia:
«Quem enviarei? Quem irá por nós?»
Eu respondi: «Eis-me aqui: podeis enviar-me».



Isaías está no Templo participando da festa da Expiação, no ano 740 – 739 a.C. Está no vestíbulo do Tempo, de onde pode entrever o Santo dos Santos que se abre precisamente nesta ocasião, para a entrada do sumo sacerdote. Ele contempla as estátuas gigantescas que aí se erguem: os dois querubins, com cinco metros de altura, cobrindo e protegendo a arca com suas enormes asas, e as de outro par de guardas protetores, parecidos com os templos assírios de então. Estes trazem, como aqueles, o fogo que consumirá o sacrifício e revelará a presença de Deus, o Terrível.
Isaías da de olhos, na penumbra do templo com as enormes estátuas e a presença da arca que se imaginava ser o pedestal de YHWH. Ai começa sua imaginação, ele pensa ter sido convidado a uma entrevista com o Todo Poderoso, Senhor dos Exércitos.


Três pontos a considerar:

1.     A visão de Isaías diz respeito à Santidade de Deus. Liga a presença de Deus ao Tempo de Jerusalém. E, todo o seu ministério consistirá em tornar o Templo e a cidade dignos de conter esta presença. Deus porém, é o Santo, isto é, Ele é o Todo Outro, e por isso o que o toca deve tornar-se também “outra coisa totalmente diversa”. Isaías vai se tornar o profeta de um povo de “Santos”, o pequeno “Resto” dos que, para participarem do Reino de YHWH, aceitarem converter-se e tornar-se “outros”.Os serafins proclamam esta santidade de YHWH por uma tríplice aclamação que se tornará litúrgica desde o judaísmo, antes de vir a sê-lo no Cristianismo. 

 
2.     YHWH é o Santo por excelência, sua glória comunica-se não só ao templo, mas ao universo. Isaías é o profeta deste universalismo, porque ele é fundamentalmente monoteísta. Se só existe um Deus, sua glória não pode limitar-se só ao templo de Jerusalém. Antes, deve manifestar-se nos “exércitos dos Céus” e cobrir toda a terra. Cada acontecimento é um elemento de uma história reveladora de Deus. Cada homem, cada cultura, são revelações da gloria do Deus único


     
3.      A descoberta da Santidade de Deus, para Isaías, ou de sua Gloria universal, não pode limitar-se a idéias ou definições filosóficas: ela é a base de uma vocação. De nada vale ao homem definir Deus, se toda a sua vida não for o reflexo desta descoberta divina. Pode-se dizer que Isaias foi conseqüente com sua visão do templo e que toda sua mensagem pode ser resumida nos temas da santidade e da glória universal de Deus, a exigir de todos e de cada um as conversões necessárias para se adaptarem à santidade de deus e a seu desígnio universalista. Não se pode ver a Deus sem irradiá-lo.

"Eis-me aqui Senhor...
Envia-me a irradiar a vossa Santidade a todo o Universo!"

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

No princípio era o olhar


MISTICA INACIANA: “No princípio era o olhar...”
Pe. Adroaldo Palaoro, sj

“Multiplica os teus olhos para verem mais... E verás muito além” (Cecília Meireles)

A grande contribuição e originalidade de S. Inácio à história da humanidade diz respeito à aventura da descoberta do “mundo interior”; esse mundo desconhecido e surpreendente, que é o coração, onde acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa.
Enquanto seus contemporâneos aventuravam-se nas descobertas de novas terras, Inácio caminhava para as “terras desconhecidas” da própria existência.
S. Inácio descobre que toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal. “Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas. Ali se pode encontrar o sentido de tudo “aquilo que se é, daquilo que se faz, se espera, busca e deseja”.
É no “eu mais profundo” que as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia, tornando-a aquilo para o qual foi chamada a ser. Trata-se da dimensão mais verdadeira de si, a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, onde ela vive o melhor de si mesma, onde se encontram os dinamismos do seu crescimento, de onde partem as suas aspirações e desejos mobilizadores, onde a criatividade busca inspiração...
É “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida. A vivência da espiritualidade inaciana nos revela que o “subir” até Deus passa pelo “descer” às profundezas da própria humanidade.
S. Inácio nos ensina o caminho através do qual descemos a uma dimensão mais profunda e assim chegamos à corrente subterrânea; aqui experimentamos a unidade de nosso ser; desta fonte brotam em nós as melhores possibilidades, capacidades, intuições...
O coração de cada um está habitado de sonhos de vida, de futuro, de projetos; sente-se seduzido pelo que é verdadeiro, bom e belo; busca ardentemente a pacificação, a unificação interior, a harmonia com tudo e com todos...; sente ressoar o chamado da verdade, o magnetismo do amor, da plenitude; sente-se atraído por um desejo irreprimível de ir além, de sair de seus “lugares estreitos”, de romper, de fazer a “travessia”..
Portanto, a espiritualidade inaciana é uma espiritualidade de “descida” em direção a tudo o que é humano. E isso é possível porque Deus já “desceu” à condição humana. Deus revela sua transcendência humanizando-se até onde nós somos incapazes de chegar.
Tal é o sentido profundo da contemplação do “mistério da Encarnação”.
Aqui som os convocados a olhar nossa “terra” cotidiana, nossa humanidade, como a Trindade olha.
Para S. Inácio, a Encarnação começa com um “olhar, com um modo de olhar que compromete o interior das Pessoas Divinas. O exercício da “contemplação da Encarnação” consistirá em acompanhar o olhar amoroso e compassivo da Trindade sobre a humanidade, em ver a humanidade com os olhos da Trindade.
O olhar da Trindade é um olhar inovador, olhar comprometido que faz acontecer a “nova criação”. A partir deste divino olhar contemplativo é que somos chamados a olhar, escutar, observar..., os outros, com os olhos de ternura, de compaixão, de acolhida...

Olhar não contaminado, sem veneno..., olhar sem suspeita, sem julgamento, sem comparações...
Olhar que recria o ser humano, que abre futuro novo, que percebe no outro uma originalidade divina.
Olhar criador que semeia vida e paraíso...
Olhar inquietante que sonda a verdade...
Olhar audacioso que desperta as consciências, sacode a acomodação, desperta a criatividade...

Ao contemplar a “Trindade olhando”, desperta-se em nós um olhar amoroso que desvenda as entranhas da realidade, que capta o mistério íntimo das pessoas e das criaturas.
Olhar amoroso que não só registra o que aparece, mas que garimpa o que se esconde; olhar apaixonado, que caça luz, que deslumbra, que fica admirado e assombrado diante da nobreza do outro e da maravilha da criação. Aí tudo é espanto, encantamento, fantástico... É através dos olhos que as crianças, pela primeira vez, tomam contato com a beleza e o fascínio das pessoas e do mundo.
A pessoa contemplativa, movida por um olhar novo, entra em comunhão com a realidade tal como ela é.
É olhar as pessoas e o mundo como “sacramento de Deus”: tudo está inundado de Deus, tudo é sagrado.
A partir do olhar de Deus podemos transformar uma pessoa, reconstruí-la, fazê-la renascer, restituí-la a si mesma e ao futuro....
Muitas vezes, o presente mais precioso que podemos dar a alguém é um olhar diferente; o futuro, a acolhida, o perdão, a alegria... dessa pessoa podem depender desse olhar novo, cheio de afeto e confiança. Em muitas situações difíceis da vida, o que salva é o olhar.
“A arte de olhar a humanidade à maneira de Inácio, é reflexo da bondade, benignidade, simpatia de Deus pelo ser humano. É daqui também que brota o reconhecido humanismo como característica da espiritualidade inaciana: uma visão completa e amável do ser humano, de seus problemas e vicissitudes, uma sensibilidade para todo valor humano e um grande interesse em promover o ser humano enquanto tal, consciente de que isso forma parte da Redenção que se iniciou com a vinda do Verbo” (Pe. Iglesias).
Contemplar o “mistério da Encarnação” significa, em primeiro lugar, “entrar em nosso eu profundo” sob o olhar da Trindade e desejar ser visto por Ela até as regiões mais secretas do nosso ser.
S. Inácio intuiu que o melhor caminho para a interioridade é através da ativação da imaginação. A imaginação é, por essência, fecunda; ela é capaz de visualizar possibilidades e alternativas ilimitadas; cada dia ela nos oferece novas oportunidades, novas experiências. Graças à imaginação fazemos presente o ausente, podemos construir, criar e recriar, inventar respostas que ninguém pensou antes...
“A imaginação é o começo da criação. Imaginamos o que desejamos; desejamos o que imaginamos e finalmente criamos o que desejamos” (George B. Shaw)
A imaginação é a porta de entrada ao “eu original”, aquele lugar santo, intocável, criativo, sede das intuições e das inspirações... É no “eu profundo” que moram as emoções, a bondade, a criatividade, a arte, os sonhos... Basta contemplar as obras de arte, ouvir as músicas, sentir as esculturas, ler os poemas... todos eles são expressões do interior.
O ser humano é habitado por um potencial fantástico de criatividade e capacidades que querem se expressar em todos os campos: na linguagem, na arte plástica, na criação literária, na invenção científica, na expressão corporal, na filosofia, na religião...
Caminhar pelos cenários do interior é uma aventura prazerosa, um desafio entusiasmante.
Por causa de seu poder criativo para intuir novas possibilidades, a imaginação tem capacidade para afetar a totalidade da pessoa e liberar um manancial de energias necessárias para realizar o imaginado.
Onde a imaginação vai, a energia vai atrás. Quem é capaz de olhar o próprio interior, sensibiliza-se para olhar de modo diferente as pessoas que o cercam.
Aqui o “ver” torna-se “visão”; “ver” é uma aptidão, “olhar” é uma atitude, é uma predisposição e uma sensibilidade capaz de perceber no outro as reservas de riquezas, de dons, de capacidades... que ele carrega em seu interior.
Tal percepção nos afeta em profundidade, movendo nossas entranhas e despertando o assombro.
O outro é “mistério” e é campo de fascínio; “mistério” diz respeito a uma experiência de encontro, a uma vivência que nos invade e nos conduz a caminhos novos.
Diante do mistério que desperta a admiração, somos convidados a enxergar além das aparências, a adquirirmos um outro olhar sobre a realidade, a vida e as pessoas.
Da contemplação para a educação “Educar” é relacionar-se, avizinhar-se, manifestar-se e admitir uma presença; é encontro de “duas interioridades”, únicas e originais, despertando-as para o espanto e para o milagre.
É a capacidade do educador de se comover diante do “mistério” dos seus educandos; é como se, olhando-os contemplativamente, pudesse vislumbrar neles uma história, uma caminhada, um projeto, um mistério em processo de desvelamento...
Ele tem consciência que todo ser humano tem reservas de riquezas, sonhos, criatividade, inspiração..., e que todo educando precisa encontrar uma presença capaz de ativar e despertar o seu mundo interior.
Na proposta pedagógica inaciana não há uma simples transmissão do saber, mas um “modo de proceder” que ajuda o outro a buscar e encontrar a verdade. Os dois aprendem e se surpreendem com as descobertas. Os dois constroem o saber.
Isso é possível despertar no educando quando, no processo educativo, a imaginação é mobilizada pela presença provocativa do educador.
A nobreza da missão educativa está aqui: apresentar possibilidades para extrair a criatividade do poço profundo da imaginação do educando e forjar a novidade a partir do nada.
Esse confrontar-se constantemente com o novo e o diferente exige energia, entusiasmo e muito ânimo.
           A missão educativa pede “anima”, “alma”. Quê “alma” nos “anima” hoje?