quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Discernindo Sentimentos





O sentimento sadio é vida para o corpo,
mas a inveja é podridão para os ossos.
Prov 14, 30







Durante o percurso de uma destas viagens para algumas destas longas reuniões que inventamos, surgiu o assunto  espiritual dos nossos desejos e sentimentos. E, assim, constatamos que é difícil dar nomes a eles e que seria interessante criar um dicionário de sentimentos, ou seja: o que significa tristeza, saudade, desânimo, depressão, exultação, euforia, alegria, etc.

 
O certo é que estamos acostumados à exegese secularizante da nossa consciência e então, interpretamos tudo sob os parâmetros de “euforia” e “desânimo”, “relaxado” ou “tenso” etc., e deste diagnóstico se vai imediatamente à terapia da “distração” ou do “comprimido sedativo, desconectante, sonífero”.



Aqueles que se negam a fazer uma leitura religiosa de seu coração, é certo que nunca compreenderão o discernimento espiritual.

Além de tudo há um discernimento médico, fisiológico, que pode diagnosticar com toda verdade “cólicas de fígado”; há outro discernimento sociológico, que sem negar o anterior, pode simultaneamente diagnosticar que o mesmo sujeito está ainda desanimado por este ou aquele motivo; e há um Discernimento Espiritual que no mesmo sujeito, e sem negar os anteriores diagnósticos, é claro, mas que brota das suas próprias certezas, diagnostica que este próprio sujeito, hepático e desanimado, está além disso, em desolação, do mau espírito.


Para complicar, há alguns autores que, de um outro ponto de vista, temem a consolação, e ainda mais, chegam a considerar conveniente que o sujeito se mantenha em desolação... Nada mais alheio e contrário ao pensamento de Santo Inácio a este respeito. A desolação, para Inácio, é tempo do mau espírito; e sempre devemos nos empenhar, com todas nossas forças, em lutar contra ela, pois é próprio do cristão viver consolado pelo Senhor.






Aqueles que pensam que “desolação total, seja algo natural, coisas que vão e que vêm”, não entenderam a grave deterioração que a desolação causa à aquele que não a combate. No fundo, talvez, não tenha entendido a malícia da ação do inimigo da natureza humana.










“O ladrão não vem senão a roubar, a matar, e a destruir;  eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância”. (Jo. 10,10)



quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Discernindo o tentador.



 A penitência transforme tudo que em nós há de mal. 
É bem maior que o pecado o vosso dom sem igual! 
(Hino próprio do tempo da quaresma.)



São numerosos os cristãos que já não acreditam em Satã. A experiência que eles têm da tentação não lhes parece postular de maneira alguma a existência de potestades demoníacas; o pecado encontra explicação satisfatória na liberdade humana. A personificação do mal pertence a uma época já ultrapassada em que o homem se considerava joguete de forças cósmicas. A mitologia popular de ontem é hoje rejeitada, e aquilo que se chamava de possessão diabólica é um traumatismo entre outros que a psicologia do profundo procura explicar. Por acaso a própria Igreja não acompanhou a mesma evolução tornando-se extremamente prudente na prática de exorcismos? 


Outros cristãos não compartilham esta opinião. Segundo eles, Satã foi mais ativo! Passar despercebido não é seu maior ardil? Trabalha tanto mais a vontade quanto menos combatido! Aliás, afirmam estes cristãos, suposto que Satã não atue mais no mundo, como se explicam as numerosas perícopes do evangelho nas quais se trata dele? O próprio Jesus teria sido vitima de crenças populares e vãs? Não, evidentemente.

Estas múltiplas perguntas nos convidam a aprofundar o conteúdo de nossa fé. Que alcance se deve atribuir à afirmação tradicional sobre o papel de Satã no mundo? Percorrendo as etapas da história da salvação, descobriremos que esta afirmação não é absolutamente gratuita. Sem ela, a obra de Cristo e o papel do Cristão não poderiam ser revelados em todas as dimensões.


O homem pagão se sente dependente de um mundo de espíritos superiores. Rapidamente passa a explicar o bem e o mal com relação a dois princípios em luta entre si. O dualismo do espírito do bem e do espírito do mal se encontra frequentemente na história religiosa da humanidade. A própria criação do mundo, muitas vezes se apresenta como a vitória do bem sobre o mal. 

No quadro da Aliança do monoteísmo de Israel , esta visão dualista se transforma profundamente. Há somente um Deus, Javé, e a existência de qualquer outro ser depende totalmente de sua benevolência criadora. É, pois, inimaginável que uma criatura, seja ela qual for, dispute com Deus seu domínio exclusivo ou coloque radicalmente em causa o seu desígnio de amor e de misericórdia. 


O homem foi criado para responder pela fidelidade à iniciativa amorosa de Deus; mas, porque é livre, pode ser infiel e trair a sua vocação. Na realidade, o homem recusou a Deus e esta recusa lhe é imputável.  Mas a experiência vivida do pecado leva o homem a dizer que cedeu à tentação como se o mal estivesse objetivamente presente na realidade antes dele consentir por um ato de sua liberdade. O que encobre esta experiência? Significa que o homem, pecando, tem consciência de se tornar parte ativa de uma solidariedade no pecado que a ele preexiste e envolve outras criaturas espirituais além do homem. Se Deus criou tudo por amor, a possibilidade de recusa se estende à totalidade da criação.


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Para o homem bíblico as coisas se explicam desta maneira. O pecado do homem traz a consciência da expulsão do paraíso terrestre. Ei-lo daí em diante num mundo que conhece a morte. Este mundo constitui o domínio das potestades espirituais que também recusaram a Deus. A morte é uma arma terrível que empregam para fazer cair o homem na tentação. Cedendo, torna-se o homem escravo delas. Mas venha um homem que não cede, porque acolhe em si a ação vitoriosa do Espírito e da Palavra de Deus, e o poder da morte estará destruído! Porque as potestades demoníacas não podem reter o homem na escravidão a não ser por seu consentimento livre. O homem nunca é joguete de outras criaturas espirituais.



             Santo Inácio de Loyola, antecipando os conceitos da moderna psicologia, vai falar do Inimigo da Natureza humana, que pode ser entendido como: O inimigo da natureza humana, como a nossa liberdade que está carregada de egoísmos e desordens; O mundo, como cidade do mal, com seu hedonismo e tentações próprias; ou mesmo Satã como personificação do mal a nos tentar. Mas certamente Inácio trabalha na estrada da liberdade que pode ser discernida e ordenada.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

As tentações e o Discernimento dos Espíritos





 Então Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, 
para ser tentado pelo diabo.
(MT 4, 1)
 
 O relato da tentação de Cristo é apresentado de maneira a nos mostrar que Cristo reviveu pessoalmente as “tentações” (Dt 8,2) do povo judeu no deserto. Ao guardar intacta sua obediência para com Deus, Cristo vai, assim, colocar novamente em marcha o desígnio da salvação, entravado pela desobediência do povo no deserto.

Cristo revive as tentações do povo de Deus como um segundo Moisés no deserto: a menção dos “quarenta dias e quarenta noites” lembra o jejum idêntico do patriarca.


 As tentações do Cristo no Deserto conservam sempre a sua atualidade. Hoje elas nos levam a tomar consciência da perspectiva fundamental que nos anima. 

O Caminho da salvação obtida em Cristo exige de cada um adaptação constante. O cristão, inserido neste mundo ainda “dilacerado pelo pecado e pela morte”,  é ameaçado de contestar a retidão da fé.

Os cristãos conscientes são tentados, em suas responsabilidades, às diferentes formas de materialismo contemporâneo. O trabalho do tentador as vezes é discreto, mas nenhum campo lhe escapa.

No momento em que a Igreja reforma a si mesma – não sem dificuldades, aliás – para responder vigorosa e mais lucidamente aos desafios do paganismo moderno, é urgente que os cristãos revejam mais uma vez sua compreensão do destino de Deus e conheçam melhor os perigos de degradação para os quais pode levá-los a ação do Tentador.





 A lição deste relato permanece sempre a mesma ao longo dos tempos: o ser humano deve aprender a viver de um pão novo, que é a vontade de Deus.


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domingo, 7 de fevereiro de 2016

Irradiar a Santidade de Deus.


Is 6,1-2a.3-8

No ano em que morreu Ozias, rei de Judá,
vi o Senhor, sentado num trono alto e sublime;
a fímbria do seu manto enchia o templo.
À sua volta estavam serafins de pé,
que tinham seis asas cada um
e clamavam alternadamente, dizendo:
«Santo, santo, santo é o Senhor do Universo.
A sua glória enche toda a terra!»
Com estes brados as portas oscilavam nos seus gonzos
e o templo enchia-se de fumo.
Então exclamei: «Ai de mim, que estou perdido,
porque sou um homem de lábios impuros,
moro no meio de um povo de lábios impuros
e os meus olhos viram o Rei, Senhor do Universo».
Um dos serafins voou ao meu encontro,
tendo na mão um carvão ardente
que tirara do altar com uma tenaz.
Tocou-me com ele na boca e disse-me:
«Isto tocou os teus lábios:
desapareceu o teu pecado, foi perdoada a tua culpa».
Ouvi então a voz do Senhor, que dizia:
«Quem enviarei? Quem irá por nós?»
Eu respondi: «Eis-me aqui: podeis enviar-me».



Isaías está no Templo participando da festa da Expiação, no ano 740 – 739 a.C. Está no vestíbulo do Tempo, de onde pode entrever o Santo dos Santos que se abre precisamente nesta ocasião, para a entrada do sumo sacerdote. Ele contempla as estátuas gigantescas que aí se erguem: os dois querubins, com cinco metros de altura, cobrindo e protegendo a arca com suas enormes asas, e as de outro par de guardas protetores, parecidos com os templos assírios de então. Estes trazem, como aqueles, o fogo que consumirá o sacrifício e revelará a presença de Deus, o Terrível.
Isaías da de olhos, na penumbra do templo com as enormes estátuas e a presença da arca que se imaginava ser o pedestal de YHWH. Ai começa sua imaginação, ele pensa ter sido convidado a uma entrevista com o Todo Poderoso, Senhor dos Exércitos.


Três pontos a considerar:

1.     A visão de Isaías diz respeito à Santidade de Deus. Liga a presença de Deus ao Tempo de Jerusalém. E, todo o seu ministério consistirá em tornar o Templo e a cidade dignos de conter esta presença. Deus porém, é o Santo, isto é, Ele é o Todo Outro, e por isso o que o toca deve tornar-se também “outra coisa totalmente diversa”. Isaías vai se tornar o profeta de um povo de “Santos”, o pequeno “Resto” dos que, para participarem do Reino de YHWH, aceitarem converter-se e tornar-se “outros”.Os serafins proclamam esta santidade de YHWH por uma tríplice aclamação que se tornará litúrgica desde o judaísmo, antes de vir a sê-lo no Cristianismo. 

 
2.     YHWH é o Santo por excelência, sua glória comunica-se não só ao templo, mas ao universo. Isaías é o profeta deste universalismo, porque ele é fundamentalmente monoteísta. Se só existe um Deus, sua glória não pode limitar-se só ao templo de Jerusalém. Antes, deve manifestar-se nos “exércitos dos Céus” e cobrir toda a terra. Cada acontecimento é um elemento de uma história reveladora de Deus. Cada homem, cada cultura, são revelações da gloria do Deus único


     
3.      A descoberta da Santidade de Deus, para Isaías, ou de sua Gloria universal, não pode limitar-se a idéias ou definições filosóficas: ela é a base de uma vocação. De nada vale ao homem definir Deus, se toda a sua vida não for o reflexo desta descoberta divina. Pode-se dizer que Isaias foi conseqüente com sua visão do templo e que toda sua mensagem pode ser resumida nos temas da santidade e da glória universal de Deus, a exigir de todos e de cada um as conversões necessárias para se adaptarem à santidade de deus e a seu desígnio universalista. Não se pode ver a Deus sem irradiá-lo.

"Eis-me aqui Senhor...
Envia-me a irradiar a vossa Santidade a todo o Universo!"