quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

No princípio era o olhar


MISTICA INACIANA: “No princípio era o olhar...”
Pe. Adroaldo Palaoro, sj

“Multiplica os teus olhos para verem mais... E verás muito além” (Cecília Meireles)

A grande contribuição e originalidade de S. Inácio à história da humanidade diz respeito à aventura da descoberta do “mundo interior”; esse mundo desconhecido e surpreendente, que é o coração, onde acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa.
Enquanto seus contemporâneos aventuravam-se nas descobertas de novas terras, Inácio caminhava para as “terras desconhecidas” da própria existência.
S. Inácio descobre que toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal. “Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas. Ali se pode encontrar o sentido de tudo “aquilo que se é, daquilo que se faz, se espera, busca e deseja”.
É no “eu mais profundo” que as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia, tornando-a aquilo para o qual foi chamada a ser. Trata-se da dimensão mais verdadeira de si, a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, onde ela vive o melhor de si mesma, onde se encontram os dinamismos do seu crescimento, de onde partem as suas aspirações e desejos mobilizadores, onde a criatividade busca inspiração...
É “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida. A vivência da espiritualidade inaciana nos revela que o “subir” até Deus passa pelo “descer” às profundezas da própria humanidade.
S. Inácio nos ensina o caminho através do qual descemos a uma dimensão mais profunda e assim chegamos à corrente subterrânea; aqui experimentamos a unidade de nosso ser; desta fonte brotam em nós as melhores possibilidades, capacidades, intuições...
O coração de cada um está habitado de sonhos de vida, de futuro, de projetos; sente-se seduzido pelo que é verdadeiro, bom e belo; busca ardentemente a pacificação, a unificação interior, a harmonia com tudo e com todos...; sente ressoar o chamado da verdade, o magnetismo do amor, da plenitude; sente-se atraído por um desejo irreprimível de ir além, de sair de seus “lugares estreitos”, de romper, de fazer a “travessia”..
Portanto, a espiritualidade inaciana é uma espiritualidade de “descida” em direção a tudo o que é humano. E isso é possível porque Deus já “desceu” à condição humana. Deus revela sua transcendência humanizando-se até onde nós somos incapazes de chegar.
Tal é o sentido profundo da contemplação do “mistério da Encarnação”.
Aqui som os convocados a olhar nossa “terra” cotidiana, nossa humanidade, como a Trindade olha.
Para S. Inácio, a Encarnação começa com um “olhar, com um modo de olhar que compromete o interior das Pessoas Divinas. O exercício da “contemplação da Encarnação” consistirá em acompanhar o olhar amoroso e compassivo da Trindade sobre a humanidade, em ver a humanidade com os olhos da Trindade.
O olhar da Trindade é um olhar inovador, olhar comprometido que faz acontecer a “nova criação”. A partir deste divino olhar contemplativo é que somos chamados a olhar, escutar, observar..., os outros, com os olhos de ternura, de compaixão, de acolhida...

Olhar não contaminado, sem veneno..., olhar sem suspeita, sem julgamento, sem comparações...
Olhar que recria o ser humano, que abre futuro novo, que percebe no outro uma originalidade divina.
Olhar criador que semeia vida e paraíso...
Olhar inquietante que sonda a verdade...
Olhar audacioso que desperta as consciências, sacode a acomodação, desperta a criatividade...

Ao contemplar a “Trindade olhando”, desperta-se em nós um olhar amoroso que desvenda as entranhas da realidade, que capta o mistério íntimo das pessoas e das criaturas.
Olhar amoroso que não só registra o que aparece, mas que garimpa o que se esconde; olhar apaixonado, que caça luz, que deslumbra, que fica admirado e assombrado diante da nobreza do outro e da maravilha da criação. Aí tudo é espanto, encantamento, fantástico... É através dos olhos que as crianças, pela primeira vez, tomam contato com a beleza e o fascínio das pessoas e do mundo.
A pessoa contemplativa, movida por um olhar novo, entra em comunhão com a realidade tal como ela é.
É olhar as pessoas e o mundo como “sacramento de Deus”: tudo está inundado de Deus, tudo é sagrado.
A partir do olhar de Deus podemos transformar uma pessoa, reconstruí-la, fazê-la renascer, restituí-la a si mesma e ao futuro....
Muitas vezes, o presente mais precioso que podemos dar a alguém é um olhar diferente; o futuro, a acolhida, o perdão, a alegria... dessa pessoa podem depender desse olhar novo, cheio de afeto e confiança. Em muitas situações difíceis da vida, o que salva é o olhar.
“A arte de olhar a humanidade à maneira de Inácio, é reflexo da bondade, benignidade, simpatia de Deus pelo ser humano. É daqui também que brota o reconhecido humanismo como característica da espiritualidade inaciana: uma visão completa e amável do ser humano, de seus problemas e vicissitudes, uma sensibilidade para todo valor humano e um grande interesse em promover o ser humano enquanto tal, consciente de que isso forma parte da Redenção que se iniciou com a vinda do Verbo” (Pe. Iglesias).
Contemplar o “mistério da Encarnação” significa, em primeiro lugar, “entrar em nosso eu profundo” sob o olhar da Trindade e desejar ser visto por Ela até as regiões mais secretas do nosso ser.
S. Inácio intuiu que o melhor caminho para a interioridade é através da ativação da imaginação. A imaginação é, por essência, fecunda; ela é capaz de visualizar possibilidades e alternativas ilimitadas; cada dia ela nos oferece novas oportunidades, novas experiências. Graças à imaginação fazemos presente o ausente, podemos construir, criar e recriar, inventar respostas que ninguém pensou antes...
“A imaginação é o começo da criação. Imaginamos o que desejamos; desejamos o que imaginamos e finalmente criamos o que desejamos” (George B. Shaw)
A imaginação é a porta de entrada ao “eu original”, aquele lugar santo, intocável, criativo, sede das intuições e das inspirações... É no “eu profundo” que moram as emoções, a bondade, a criatividade, a arte, os sonhos... Basta contemplar as obras de arte, ouvir as músicas, sentir as esculturas, ler os poemas... todos eles são expressões do interior.
O ser humano é habitado por um potencial fantástico de criatividade e capacidades que querem se expressar em todos os campos: na linguagem, na arte plástica, na criação literária, na invenção científica, na expressão corporal, na filosofia, na religião...
Caminhar pelos cenários do interior é uma aventura prazerosa, um desafio entusiasmante.
Por causa de seu poder criativo para intuir novas possibilidades, a imaginação tem capacidade para afetar a totalidade da pessoa e liberar um manancial de energias necessárias para realizar o imaginado.
Onde a imaginação vai, a energia vai atrás. Quem é capaz de olhar o próprio interior, sensibiliza-se para olhar de modo diferente as pessoas que o cercam.
Aqui o “ver” torna-se “visão”; “ver” é uma aptidão, “olhar” é uma atitude, é uma predisposição e uma sensibilidade capaz de perceber no outro as reservas de riquezas, de dons, de capacidades... que ele carrega em seu interior.
Tal percepção nos afeta em profundidade, movendo nossas entranhas e despertando o assombro.
O outro é “mistério” e é campo de fascínio; “mistério” diz respeito a uma experiência de encontro, a uma vivência que nos invade e nos conduz a caminhos novos.
Diante do mistério que desperta a admiração, somos convidados a enxergar além das aparências, a adquirirmos um outro olhar sobre a realidade, a vida e as pessoas.
Da contemplação para a educação “Educar” é relacionar-se, avizinhar-se, manifestar-se e admitir uma presença; é encontro de “duas interioridades”, únicas e originais, despertando-as para o espanto e para o milagre.
É a capacidade do educador de se comover diante do “mistério” dos seus educandos; é como se, olhando-os contemplativamente, pudesse vislumbrar neles uma história, uma caminhada, um projeto, um mistério em processo de desvelamento...
Ele tem consciência que todo ser humano tem reservas de riquezas, sonhos, criatividade, inspiração..., e que todo educando precisa encontrar uma presença capaz de ativar e despertar o seu mundo interior.
Na proposta pedagógica inaciana não há uma simples transmissão do saber, mas um “modo de proceder” que ajuda o outro a buscar e encontrar a verdade. Os dois aprendem e se surpreendem com as descobertas. Os dois constroem o saber.
Isso é possível despertar no educando quando, no processo educativo, a imaginação é mobilizada pela presença provocativa do educador.
A nobreza da missão educativa está aqui: apresentar possibilidades para extrair a criatividade do poço profundo da imaginação do educando e forjar a novidade a partir do nada.
Esse confrontar-se constantemente com o novo e o diferente exige energia, entusiasmo e muito ânimo.
           A missão educativa pede “anima”, “alma”. Quê “alma” nos “anima” hoje?